No ano de 2019 o Instituto dos Advogados de São Paulo realizou um almoço em homenagem a um dos mais renomados advogados criminalistas do país, Antônio Claudio Mariz de Oliveira, que no ponto alto de seu discurso criticou um dos piores efeitos colaterais da TV Justiça sobre o Supremo Tribunal Federal: a existência de um efeito torcida sobre os Ministros da corte.

Se de um lado a transmissão ao vivo dos julgamentos do tribunal trouxe o efeito benéfico de permitir que a população fiscalize a atividade judicial, de outro, ao invés de permear a sociedade com uma percepção mais profunda das questões de constitucionalidade envolvidas no julgamento, criou torcidas que passaram a defender ou atacar os Ministros independentemente da qualidade dos votos e decisões proferidas, mas de acordo com supostos alinhamentos políticos de direita ou de esquerda.

No campo penal, soltar qualquer acusado em processo de grande repercussão era blasfêmia grave e o Ministro rapidamente passava a ser atacado, em especial quando se manifestasse pela proteção de direitos e garantias individuais dos acusados.

Um contraponto seria o sistema alemão, no qual o julgamento da corte constitucional é realizado de portas fechadas e os Ministros não podem se manifestar sobre os julgamentos fora do processo, para evitar que o julgamento seja influenciado pelo clamor público. Mas esse não é o ponto.

O efeito de torcida acuou a nossa suprema corte – como desabafou o ex-presidente em uma interceptação telefônica vazada – que por quase seis anos não colocou freios no punitivismo desenfreado e representado pela Operação Lava Jato, tampouco se aprofundou nas questões de competência que poderiam desencadear a derrocada do que convencionei chamar de “juízo universal de Curitiba”.

Por uma ginástica interpretativa, todas as ações penais envolvendo os partidos do governo (PT, PP e PMDB), as principais empreiteiras brasileiras e a Petrobras foram declaradas conexas, a ponto de serem julgadas em uma comarca que não foi o centro político do país e ao mesmo tempo não era a sede da Petrobras ou de qualquer das empreiteiras envolvidas.

Pelo que me recordo, salvo as obras da Refinaria Getúlio Vargas, lá se tratou de tríplex no Guarujá, sítio em Atibaia, obras da RNEST de Pernambuco, obras do COMPERJ em Itaboraí, Edifício Sede em Salvador, mas nada que justificasse que a investigação sobre o doleiro do lava a jato de Brasília (situado em frente ao Hotel Brasil 21) atraísse a competência de tudo relacionado à Petrobras para a 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba.

Entretanto, por obra do magistrado, ratificada pelos eminentes desembargadores da Justiça Federal da 4ª região, a falência moral do Brasil foi julgada em Curitiba, dando atribuição ao Juiz daquela Vara para julgar tudo o que ele conseguisse justificar como conexo ao caso do lava a jato.

Antes que você, leitor, torça o nariz e identifique que este autor é advogado criminalista, já faço um alerta: não sou a favor da corrupção e não vivo de defender bandido!

Nós advogados, infelizmente estamos acostumados a sermos atacados como se defendêssemos o crime ou a corrupção. Faço aqui uma breve advertência: advogado defende direitos, pessoas (culpadas ou inocentes), que igualmente tem direito a um julgamento justo, de acordo com a nossa constituição.

Entretanto, o que ninguém esperava é que as conversas travadas entre juiz e procuradores da república fossem hackeadas, revelando mais do que uma relação de coleguismo e cafezinho de servidores que atuam na mesma unidade judiciaria. Aquela – conhecida da comunidade jurídica – é tolerada quando não compromete a imparcialidade do juiz. Mas as conversas extra autos não tratavam de amenidades, tratavam dos processos em andamento!

Caro leitor, Justiça não é teatro! A prestação jurisdicional é uma atividade extremamente regulamentada pelo Estado, exercida por pessoa aprovada em um concurso de provas e títulos para um cargo vitalício, denominado Juiz, para quem são asseguradas prerrogativas como a independência, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, exatamente para que essa pessoa possa exercer a função de forma justa e imparcial.

Outro sujeito essencial para a justiça criminal é aquele que ocupa o cargo de Promotor de Justiça ou Procurador da República, que também é aprovado em concurso de provas e títulos para um cargo com prerrogativas semelhantes as do Juiz, para que ele exerça de forma isenta a função de acusar em nome do Estado.

Para que a justiça ocorra, ou seja feita, é necessário que não haja confusão entre as atividades do juiz e do procurador da república, para que o juiz possa julgar o processo de forma imparcial, afinal, se juiz e procurador da república estão preparando a acusação em conjunto, réu e advogado são meros figurantes no processo e a justiça vira um teatro.

No nosso sistema, como em qualquer ordenamento jurídico do mundo civilizado, não se pode prender alguém – inocente ou culpado – sem que haja um julgamento justo e imparcial de acordo com as regras processuais.

A operação spoofing revelou conversas entre Procuradores da República e o então juiz da 13ª vara de Curitiba que nunca poderiam ter ocorrido, que extrapolaram os limites do coleguismo e da legalidade. Juiz deixou de fazer papel de juiz e passou a fazer papel de procurador da república, direcionando e orientado a atividade acusatória. Então o julgamento não foi julgamento. Foi só teatro. Grave!

Foi isso que se terminou de julgar nesta terça-feira, 22/03/21: se um daqueles processos de Curitiba era julgamento ou era teatro. E então, mesmo após já ter proferido o seu voto, o Presidente da Segunda Turma do STF, Ministro Gilmar Mendes, retomou a palavra após o voto Ministro Kassio Nunes Marques, defendendo de forma firme e contundente que era teatro, que o juiz cruzou a linha da magistratura e participou do processo de acusação, permitindo que a Ministra Carmem Lucia mudasse seu voto, para declarar a suspeição do ex-juiz Sergio Moro.

Hoje Mariz, confesso que assisti ao julgamento na arquibancada dos torcedores da Constituição Federal e, com a devida vênia, o Ministro Gilmar Mendes foi o centroavante deste time.

*Pedro Ivo Gricoli Iokoi, advogado criminalista. Mestre e doutor em Processo Penal pela USP. Ex-presidente da OAB/SP Pinheiros

 

Fonte: Conteúdo Estadão, Redação

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