Assédio: As mulheres são vítimas diárias, “Bia”, “Lu” e “Alexia” atendentes virtuais sofrem agressões

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Assédio: Você já deve ter visto a campanha contra assédio e violência sexual lançada pelo Bradesco. Na peça publicitária, são exibidas mensagens machistas e com conteúdo sexual que são recebidas pela “Bia”, assistente virtual do banco. A Bia é uma voz, que obedece a comandos. A campanha avisa que Bia “não vai mais se calar”, o que significa que agora o robô responde às mensagens de assédio. O assédio também já foi denunciado pela Magazine Luiza em 2018 (e sua assistente virtual Lu) e pela Amazon, fabricante do Alexa. Legal essas empresas se posicionarem. Quem assedia precisa mesmo ser educado.

Mas a vida real é muito diferente da realidade assistente virtual Bia, que pode “dar respostas à altura”. Na vida das assistentes de telemarketing reais, não existe a opção de responder ao assédio. E, pelo contrário, a maioria delas (todas as que foram ouvidas pela coluna) não têm nem a opção de desligar quando recebem um assédio verbal de um cliente, sob pena de serem advertidas ou perderem o emprego. E, com medo do desemprego, elas são obrigadas a se calar, sim. E muitas adoecem.

A coluna conversou com assistentes de telemarketing de empresas diferentes. Todas relatam que o assédio é constante e parte da rotina.

Entre as mulheres do meio é comum ter que lidar com homens que ligam ofegantes, perguntando o que as “assistentes estão vestindo”. Nenhuma delas relatou que haja algum tipo de combate e suporte a esse tipo de assédio nas empresas em que trabalham.

“Fui assediada ontem”, diz Márcia, nome fictício, de 21 anos, no último domingo. “Atendi uma ligação e me apresentei. O cliente perguntou se eu podia repetir o meu nome. Repeti e perguntei no que podia ajudar, e ele começou a gemer, pedindo para que eu ficasse repetindo o meu nome devagar. Isso durou cerca de 30 segundos. Foi o suficiente para acabar com o meu expediente”, diz Márcia.

Ela contrariou as regras do manual da empresa em que trabalha, que exige um tempo mínimo para que a ligação seja encerrada. E desligou. “Comuniquei ao meu supervisor, que disse que eu devia ter aguardado o tempo mínimo. Disse para ele que preferia ser advertida do que passar por isso de novo e que se ele quisesse me punir, que ficasse à vontade.

Márcia trabalha em um call center há dois anos e já perdeu a conta de ligações de assédio que recebeu. “Eu comecei com 19 anos. Foi meu primeiro emprego. Muitas vezes eu saí do trabalho abalada, sem nem conseguir terminar o expediente. Você recebe uma ligação dessas e já fica com medo quando o telefone toca de novo, com medo de ser a mesma pessoa.” Nesses dois anos, ela diz que nunca recebeu apoio de um supervisor ao receber uma ligação de assédio.

“Há quanto tempo você não transa?”

 Daiane Souza , 33 anos, diz que ouvia absurdos dos clientes e era orientada a não desligar a ligação - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Daiane Souza, 33 anos, diz que ouvia absurdos dos clientes e era orientada a não desligar a ligação

Imagem: arquivo pessoal

“Eu trabalhava em um departamento de cobrança. E o que eu mais ouvia era “você já chupou um p. hoje?” “Há quanto tempo você não transa?” Um dia um senhor me perguntou se eu queria ser sustentada por ele, disse que pagaria minhas contas se eu chupasse ele. Era nesse nível”, conta Daiane Souza, de 33 anos.

Apesar de ser orientada a jamais responder, “e também não desligar, mas esperar que o cliente desligue”, Daiane conta que algumas vezes contrariou a recomendação. “Eu não aguentava e perguntava se a pessoa falaria assim com uma filha, uma mãe”.

Segundo ela, existe uma espécie de lei do silêncio no meio. “Ninguém reclama muito, porque se reclamar sabe que pode ser demitido. Além de lidar com o assédio, você ainda tem que bater metas. Daiane, que no momento está desempregada, acredita que foi demitida justamente por falar abertamente que não concordava com o tratamento recebido pelos funcionários.

A rotina de assédio, moral e verbal, pode adoecer. Adrielly Amaral é uma prova disso. “Eu trabalhei em call center dos 19 aos 23 anos. Tenho ansiedade e depressão, agravados pela rotina desse trabalho. Eu já não conseguia dormir, acordava tendo pesadelos com gritos dos clientes, como se estivesse trabalhando. Aí minha família me apoiou a sair”, diz Adrielly, que hoje termina a faculdade de direito.

“Eu passei por muito assédio moral, sexual e xenofobia. Sou baiana, e ouvia que eu não sabia falar direito.” No caso do assédio sexual, ela perdeu a conta da quantidade de vezes que ouviu gemidos de homens que ligavam ofegantes. “Eles falavam muita baixaria e pediam que a gente fizesse coisas.”

Adrielly conta que algumas vezes recebeu apoio de supervisoras mulheres. “Elas não reclamavam se a gente desligasse uma ligação de assédio antes do tempo permitido e até nos davam um tempo para bater um papo. No caso dos supervisores homens, era mais complicado. “Já tive supervisor que não me deixou desligar, que me fez ficar ouvindo barbaridades. E me disse que era parte do meu trabalho.”

Afastada do call center por causa dos ataques de pânico de pânico, a estudante de direito Adrielly resolveu fazer sua monografia sobre “Assédio no Trabalho” inspirada pelo que viveu.

“O meu orientador disse para a gente escrever sobre algo que a gente conhecia e eu não tive dúvidas. Eu sei muito bem o que é chegar no trabalho com medo porque sabe pelo que vai passar, com o coração saindo pela boca.”

E não, elas não têm a opção de, como diz a propaganda do Bradesco, fazer como a Bia e “dar uma resposta contundente”. O que muitas acabam fazendo, quando podem e não aguentam mais é o mesmo que Adrielly: largar o emprego.

Fonte:  Universa – Por: Nina Lemos – Colunista

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